Tudo o que você queria saber sobre a diversidade linguística e não tem mais língua pra perguntar

Fotos: Iphan

Tudo o que você queria saber sobre a diversidade linguística e não tem mais língua pra perguntar.

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Reino de paz se um homem só a conquista: sexismo e racismo nas interpretações da penetração humana na América

preguiça 01

Vem, Dama, vem que eu desafio a paz;
Até que eu lute em luta o corpo jaz.
Como o inimigo diante do inimigo,
Canso-me de esperar se nunca brigo.

homo antecessor 04

Minha Mina preciosa, meu império,
Feliz de quem penetre o teu mistério!
Liberto-me ficando teu escravo;
Onde cai minha mão, meu selo gravo.

(trechos de “Elegia: indo para o leito”. John Donne/tradução Augusto de Campos)

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Cê já sabe em que língua vai xingar o juiz?

Na Pittacos.

Cê já sabe em que língua vai xingar o juiz?.

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O Genocídio Indígena e o Golpe da Indignação Seletiva

indios_terravermelhaO Genocídio Indígena e o Golpe da Indignação Seletiva.

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Com quantas línguas se faz um Brasil?

Beto Vianna – publicado na Revista Pittacos http://revistapittacos.org/2014/03/23/com-quantas-linguas-se-faz-um-brasil/

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O que nos leva a defender a língua portuguesa na economia linguística mundial? Já nos ensinou Walter Rodney, em Como a Europa subdesenvolveu a África, que difundir a própria língua foi prática usual do neocolonialismo europeu. Quando o centro de difusão do português passa a ser o Brasil, uma ex-colônia, a promoção ultramarina da língua acaba assumindo um caráter contraditório. Antes de debater as práticas – oficiais ou não – de difusão da língua nacional, a questão que devia ser colocada é: e afinal, que língua do Brasil é essa?

Ou, mais precisamente, a quantas anda a política linguística brasileira dentro das fronteiras do país? Uma das dificuldades para que essa questão se coloque é a ideia disseminada de que o Brasil é um país monolíngue, tanto em termos da língua utilizada (o português) quanto em seu uso “correto”, ou seja, a manipulação de um sistema linguístico estático, previamente codificado (o português padrão). Trata-se de um imaginário poderoso a respeito do que seja “língua”, arraigado em diversos setores da sociedade, inclusive na grande imprensa e nos centros decisores. A essa dificuldade, soma-se outro lado perverso da moeda: muitos linguistas, em pé de guerra contra os abusos normativos da gramática tradicional, agarram-se a uma abordagem descritivista da variação linguística, ajudando a aprofundar o poço entre a noção acadêmica da língua dinâmica e o valor sociocultural (caro ao restante da sociedade) da língua única, idealmente imaculável, mas lamentavelmente maculada por seus falantes displicentes.

Os antropólogos “sempre estiveram, desde os seus primeiros passos, envolvidos direta ou indiretamente com os grupos que estudaram”, no dizer de Soraya Fleischer, e, assim, “…seus dados de pesquisa repercutiram na formulação e avaliação de políticas públicas e projetos de intervenção”. É verdade que parte da linguística brasileira, notadamente aquela tocada por pesquisadores em línguas indígenas, aproxima-se da caracterização feita por Fleischer. Mesmo nesse caso, ainda é preciso que os estudos incorporem mais que a opção preferencial pela descrição, abrindo uma discussão mais abrangente com o restante da sociedade e legitimando a participação dos linguistas em políticas públicas envolvendo o alcance dos usos, do status e das funções das muitas línguas brasileiras e de suas variantes. O fato pouco reconhecido de que o Brasil foi e continua sendo um país plurilíngue, com situações muitas vezes conflituosas de contato linguístico, merece a participação mais efetiva da comunidade das ciências da linguagem nos esforços de pesquisa, elaboração de políticas e planejamento linguísticos.

A intervenção organizada no ambiente linguístico não é preocupação recente na história humana. Toda conformação social envolvendo a participação de falantes de mais de uma língua (ou de variantes da mesma língua, quando tal distinção é feita) sempre ensejou alguma proposta de reacomodação do ambiente linguístico, oficialmente ou não. E formal ou informalmente, toda sociedade do tipo estatal pratica alguma política linguística. Se a política vira planejamento linguístico, este pode dotar uma língua de recursos que ela não possuía (como a modalidade escrita) ou modificar a estrutura existente (como nas reformas gramaticais ou ortográficas). A intervenção pode se dar, ainda, no status da língua, quando uma língua passa a cumprir funções que ela não possuía (de língua oficial, por exemplo), ou quando se elege, dentre as variantes disponíveis de uma língua, aquela que irá cumprir tais funções. Acima e abaixo das fronteiras do Estado, isso pode significar, respectivamente, promover uma língua em seu status internacional (como se faz oficialmente com o português), e “empoderar” uma língua minoritária (como ainda se faz muito timidamente no Brasil).

Políticas de além-mar: o caso da Nigéria

NPG x171545; Hannah Idowu Dideolu Awolowo (nÈe Adelana) and Obafemi Awolowo with their family by BassanoA Nigéria tem um ambiente marcadamente plurilíngue, com um quadro de cerca de 500 línguas nacionais, tribais ou regionais, línguas europeias com funções de comércio e ensino e de língua oficial, além de línguas veiculares e de contato surgidas antes e depois da expansão colonial europeia. Por exemplo, desde o século XV, o português serviu de base para a criação de línguas pidgin, a islamização no norte do país acolheu o árabe como língua religiosa e de comércio, e línguas nativas majoritárias são usadas há séculos como línguas de contato. A independência reforçou a cultura de uma “língua única” como língua nacional e oficial, e parece impraticável, por motivos políticos e simbólicos, dar esse papel a qualquer das três línguas majoritárias (hausa, iorubá e igbo, com cerca de 20 milhões de falantes cada), apesar de elas figurarem como co-oficiais. No momento de sua independência, contudo, a Nigéria não possuía nenhuma língua africana de plena aceitação, como é o caso, no contexto africano, do swahili, no Quênia, e do amárico, na Etiópia.

Ou, ao menos para as classes altas. De fato, há na Nigéria uma língua que preenche os quesitos necessários de língua pátria e mátria: o pidgin nigeriano, ou pidgin english, ou naija lingo, como é chamado no vernáculo. Apesar de chamada de “pidgin”, essa é língua materna de boa parte de seus falantes. O naija é falado por toda a extensão da Nigéria, por mais de 30 milhões de pessoas (mais que qualquer das três majoritárias) e amplamente utilizado como língua veicular, ou de contato. A barreira para sua utilização é o forte preconceito que o naija sofre das classes educadas, visto como um “inglês corrompido” e, portanto, descartado em todas as esferas de poder como candidato a língua da nação. E, é preciso frisar, o “pidgin english” não é um dialeto do inglês. Há muitas variantes de inglês pelo mundo, como na Índia, e o próprio inglês falado na Nigéria tem fortes características locais. O naija, porém, tem processos morfossintáticos próprios e vários dialetos regionais. É língua franca entre as classes mais pobres das grandes cidades, e língua comum dos habitantes dos vilarejos na zona rural em muitas regiões do país. Se, estruturalmente, o pidgin nigeriano funciona tão bem quanto qualquer língua (e pode ser equipado para assumir qualquer papel), a mudança no status do naija está comprometida pelo desinteresse dos centros decisores. Parece que estamos falando do Brasil. O naija se assemelha a algumas variantes do português que, apesar de faladas por um enorme contingente da população, são estigmatizados como “variedades baixas” da língua. Por outro lado, a má fama do naija assemelha-se às línguas indígenas brasileiras, que têm seu uso desestimulado pela pressão e pelo preconceito dos falantes de português e, em muitos casos, dos próprios índios, que sabem o quanto perdem por falar uma língua estrangeira em sua própria terra.

A Nigéria difere do Brasil em um aspecto importante: no sistema educacional, a política linguística nigeriana reconhece sua condição multilingue. Em cada região, a principal língua local (a língua majoritária naquela região, e não só as “três grandes”) é o meio de instrução no ensino primário. No segundo grau, uma língua majoritária regional é introduzida, o francês é oferecido como segunda língua, e o inglês é o meio oficial de instrução, tanto no ensino secundário quanto no superior. Finalmente, na universidade, os alunos têm oportunidade de aprender uma língua africana não nigeriana, como o swahili ou o árabe.

Ainda que possamos objetar que as situações in vivo na Nigéria e no Brasil sejam diferentes – lá, várias línguas majoritárias; aqui, poucos falantes para a imensa maioria das línguas – uma parte importante dessa diferença está na intervenção. O efeito da política linguística nigeriana aplicada à educação é a garantia de um papel importante a dezenas de línguas. Se o governo nigeriano é “obrigado” a oferecer educação primária nas suas muitas línguas maternas (se quiser educar um grande contingente de pessoas) essa política tem o efeito positivo de permitir – e estimular – as famílias a continuarem a usar a própria língua em casa e na rua, sem a ameaça de conflito desse falar materno com o ambiente linguístico escolar (drama que sofrem milhões de crianças brasileiras ao descobrirem, na escola, que “falam errado”).

Políticas aqui: os Mawé, os Zo’é e as línguas brasileiras

zoeA língua sateré-mawé é uma das línguas indígenas mais faladas no Brasil, e usada pela maioria dos membros do grupo étnico de mesmo nome, os Sateré-Mawé. Isso não impressiona se comparado a mais de 20 milhões de falantes do iorubá nigeriano. Trata-se de uma população de cerca de 8.500 pessoas, a maioria vivendo na terra indígena Andirá-Marau, entre os Estados do Amazonas e Pará, na região do Médio Amazonas. O que é relevante é a extensão em que a língua (ou seja, o modo de vida de seus falantes) é afetada pela política de extermínio cultural em andamento desde o processo de colonização. O contato estabelecido com o falante de português, ainda hoje, provoca nos índios uma supervalorização dessa língua em detrimento da língua materna. Uma atitude linguística com reflexos em vários aspectos da vida Sateré-Mawé, como a educação formal e informal das crianças, conduzida em língua portuguesa. Por exemplo, apesar da maioria das mulheres falarem exclusivamente o mawé, nas cinco comunidades situadas no rio Waikurapá, bem como nas comunidades da área do Andirá e Marau (que se encontram mais próximas das cidades), a tendência é as crianças só falarem o português.

A perda sofrida pelo sateré-mawé não se resume, como costumam dizer antropólogos e linguistas, aos “saberes tradicionais” contidos na língua de um povo. Há graves consequências sociais e emocionais imediatas para os membros de uma comunidade de fala que, por ocasião dos conflitos linguísticos com uma língua “de prestígio”, são privados de exercer amplamente a própria língua. Recentemente, a Organização dos Professores Indígenas Sateré-Mawé, que conta com a colaboração de antropólogos e linguistas, desenvolveu um trabalho com a finalidade de fortalecer a língua materna, através atividades de recuperação das práticas indígenas próprias, incluído, aí, o uso da língua.

Essa e outras iniciativas interdisciplinares em que a pesquisa se transforma em “pesquisa-ação”, ou uma “antropologia aplicada”, e (isso é fundamental) demandadas pelas próprias comunidades, são de extrema importância para o dia a dia dos grupos de fala ameaçados de extinção, como é o caso da grande maioria dos falantes de línguas indígenas no Brasil. Em alguns casos, pode atenuar ou mesmo reverter situações críticas. É o caso do trabalho de reintegração ao modo de vida tradicional dos índios Zo’é, do Pará, realizado nos últimos 30 anos. Na segunda metade dos anos 80, os Zo’é foram forçados a um contato com missionários, ocasionando problemas de identidade, doença e morte de muita gente. A determinação da Funai de que os profissionais de campo só se dirijam aos índios em sua língua tem tido os resultados visíveis de melhoria física e emocional dos Zo’é, que hoje somam mais que o dobro da população da época da saída dos missionários.

Infelizmente, sem a possibilidade de acesso aos meios de sua implementação, as políticas linguísticas representadas por tais iniciativas não se consubstanciam no outro lado do binômio: não se transformam em planejamento. Nesse quadro, as línguas e as pessoas ameaçadas continuarão ameaçadas a cada nova possibilidade de contato com a língua e as pessoas de prestígio, dependendo, a cada instante, de proteção oficial ou de iniciativas como as mencionadas acima, perigosamente beirando um paternalismo tão danoso quanto a doença que se propõe a curar.

Língua materna é assunto sério. É com ela que cada um de nós trata de viver o mundo que a gente vive. E há 200 línguas dessas no Brasil. Ao lado do mito infantil do “português correto” (em pleno viço hoje, na escola e na mídia), continuamos a pensar e agir em nossas culturas acadêmica, letrada, jornalística, jurídica e administrativa, como se o português fosse a língua natural e exclusiva da nação brasileira desde sempre, ou desde que somos civilizados. Uma mudança cultural importante, que antecede até mesmo o desejo e os meios de se intervir na língua ou nas línguas do Brasil, é reconhecermos a realidade de comunidades falantes de línguas brasileiras, o que não se resume a uma dicotomia entre uma língua da nação e línguas indígenas minoritárias. O Brasil tem mais a dizer, e nós a ouvir.

Sugestões de leitura

CABRAL, Ana Suelly Arruda Câmara. Potencialidade de mudança gramatical em uma situação de contato incipiente: O caso da língua Zo’é. In: SILVA, Sidney de Souza (Org.). Línguas em contato: Cenários de bilinguismo no Brasil. Campinas: Pontes, 2011. p. 73-92.

CALVET, Louis-Jean. As Políticas Linguísticas. São Paulo: Ipol/Parábola, 2007.

FLEISCHER, Soraya. Antropólogos ‘anfíbios’? Alguns comentários sobre a relação entre Antropologia e intervenção no Brasil. Revista Anthropológicas, Recife, v. 18, n. 1, p. 37-70, 2007.

FRANCESCHINI, Dulce do Carmo. Línguas indígenas e português: contato ou conflito de línguas? Reflexões acerca da situação dos Mawé. In: SILVA, Sidney de Souza (Org.). Línguas em contato: Cenários de bilinguismo no Brasil. Campinas: Pontes, 2011. p. 41-72.

MANN, Charles C. The sociolinguistic status of Anglo-Nigerian pidgin: An overview. International Journal of Sociology of Language, n. 100-101, p. 167-78, 1993

RODNEY, Walter. How Europe underdeveloped Africa. Abuja: Panaf, 2005.

SILVA, José de Oliveira da; FRANCESCHINI, Dulce do Carmo; CARNEIRO, Denize de Souza. Revitalização linguística e cultural Sateré-Mawé. Anais do SILEL, v. 1. Uberlândia: EDUFU, 2009.

VIANNA, Beto. “Nossa língua”. Jornal O Tempo. Belo Horizonte, 10 de julho de 2009. Seção Opinião, p. 19.

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Van Helsing e o cocô da verdade

nosferatu01Dois dos livros que mais gosto na praia da ficção foram escritos por cidadãos britânicos. Nisso eu posso ser e até fui bem patrulhado como um chauvinista de mente incorrigivelmente colonizada, e faço até gosto, pois noves fora a literatura, meus queridinhos na música são ingleses (aquela banda do George Harrison) e em outro terreno dos passatempos ocidentais – a ciência – sou darwinista de carteirinha. Mas não é só pelo sotaque britânico que minha confissão literária pode render apedrejamento. As obras de que estou falando são Frankenstein, de Mary Shelley, e Drácula, do irlandês (e, não, inglês, vá lá) Abraham Stoker.

Até que o livro de Shelley nem é problema. Primeiro, porque a menina tem pedigree. É filha da filósofa feminista Mary Wollencraft, esposa do finíssimo poeta Percy Shelley e amigona de Lorde Byron, outro monstro sagrado da pena inglesa, guru do movimento romântico. E Shelley não era dama de companhia dessas feras. Escrevia muito e escrevia bem, ensaísta, editora e tão ou mais politicamente ativista que a mãe. E a própria obra mencionada, Frankenstein, tem seu lugar ao sol na lista de boas leituras do mundo.

Por falar em Shelley (o marido) e Byron, é bem conhecida a história (tem filme e tudo sobre isso, um filme bem doidão: “Gothic”, de 86) em que os dois, mais o ítalo-inglês John William Polidori, passaram uma bizarra noite na companhia de Shelley (a esposa), e desse rendezvous opiácio, com a borbulhante colaboração do láudano, brota o argumento de Frankenstein. Polidori é outra figuraça. Foi considerado culpado por introduzir o tema “vampiro” na literatura ocidental, com um conto seu chamado, adivinhe só, “The Vampyre”. E aí está a deixa pra pularmos pro Drácula.

nosferatu04Bram Stoker não tem a proeminência, o reconhecimento, as qualidades e muito menos o sangue azul literário de Shelley. Escreveu muita coisa aqui e outras ali, mas suas melhores pontuações no currículo (fora, é claro, Drácula) são ter se casado com a ex-namorada de Oscar Wilde, ter sido amigo do ator Henry Irwin e ter dirigido o teatro londrino Lyceum, de propriedade do próprio Irwin. Dizem que a figura de Irwin inspirou a criação da figura do Conde Drácula. Sim ou não, o certo é que o cara é a cara cuspida do Christopher Lee.

Sobre Drácula, só posso dizer o seguinte: conheço bem a história do Conde, do caçador de vampiros Van Helsing e do casal atormentado Jonathan e Mina Hacker desde pirralho (sempre me afeiçoei a esse nobre vampirão – no sentido platônico, que fique claro), mas só agora, no alborecer dos meus quarenta, me dispus a ler, de fato e de cabo a rabo, o volume. E até onde eu tenha algum crédito para avaliar méritos literários, tem mesmo muita coisa melhor por aí, mas não é por aí que eu gosto da obra. O buraco – e a razão de ser deste texto – é em outro lugar.

Graças a Hollywood, e, mais tarde, a toda uma indústria do entretenimento light ocidental – da Família Addams até à incrível turma do Penadinho -, Frankenstein e Drácula viraram aquilo que nunca foram. O livro de Shelley não é sobre um cientista maluco irresponsavelmente brincando de Deus, e o texto de Stoker não é a vitória do amor cristão sobre as forças sensuais do mal. Definitivamente, não, e desafio para um duelo (de verdade, com arma escolhida e tudo) quem, nesse ponto, insistir no meu contrário.

frankenstein01Frankenstein leva às últimas consequências (emocionais, pedagógicas, políticas) a proposta do doutor Erasmus Darwin (avô de meu ídolo Charles) de que a vida é animada por um fluxo energético (a “eletricidade animal”, de Luigi Galvani), e, ainda assim, deve ser cuidada – amada – para a vida realizar-se plenamente como vida.

Drácula também tece considerações divertidas sobre o que é ser ou estar vivo, mas esse é o subtema mais ingenuozinho da obra. O livro dá asas à pilhéria de Stoker com o status auto afirmado da ciência, num ponto absolutamente fundamental: o lugar da verdade. Stoker, a par de suas diatribes literárias, formou-se em matemática no famoso Trinity College, de Dublin (frequentada por outro irlandês bamba, Jonathan Swift, cuja obra, Gulliver, também teve o triste destino de ser ensalsichada pela cultura da irrelevância). Regozijo-me em saber que o matemático Stoker não estava alheio à maior e mais longeva história de mistificação de uma instituição, desde que Platão fundou a Academia: os cientistas são uma raça de pessoas especiais que apontam para a verdade.

É curioso que Shelley e Stoker tenham escolhido, para heróis científicos de suas obras, não súditos da coroa britânica, mas, respectivamente, um suíço e um holandês. Nietzsche costumava gozar a cara dos ingleses dizendo que eles são comerciantes, nada mais que comerciantes. Pode ser, mas também deve ser que, para ser um bom comerciante, é preciso estar preparado para seduzir o freguês com algo melhor que a própria mercadoria. Shelley (post facto, é claro) e Stoker rendem-se ao deboche de Nietzsche ao buscar em terras de fala (e, portanto, mente) mais germanizada, a personificação romântica do amor genuíno pelo explicar as coisas do mundo. Mesmo Van Helsing, holandês, é caracterizado no Drácula com forte sotaque germânico e cheio de expressões alemãs (“Mein Gott!”) talvez para afastá-lo um pouco de Amsterdã, afinal, também terra de comerciantes (em que outro lugar do mundo putas e maconheiros são vistos por tradicionais turistas mineiros de toda parte, do Brasil inclusive, como pitorescos atrativos locais?).

O suíço Victor Frankenstein da obra de Shelley está longe de ser um Hugo A-Go-Go, vilão de Batfino. Sim, há loucura em Frankenstein, mas ela transita por seu amor pela namorada, pelos parentes, pelos amigos, tanto quanto em seu amor por explicar os fenômenos do universo (e um amor não exclui, mas alimenta, o outro). O sucesso e a tragédia científicas de Frankenstein ao criar “o monstro” refletem a diferença de perspectiva sobre a “positividade” da ciência que existe entre a criatura Victor Frankenstein, leitor de Galvani, e a de sua criadora Mary Shelley, leitora de Erasmus Darwin. E por falar em Batfino, voltemos ao cientista de Drácula.

nosferatu03Abraham Van Helsing ganhou o prenome de seu criador, Stoker, talvez porque o autor o considerasse um grande sujeito. Também acho. Van Helsing é chamado à Inglaterra por seu ex-discípulo, John Seward, para ajudar no caso da misteriosa doença de Lucy Westenra, uma patricinha enricada, cobiçada por três personagens do livro (o Dr. Seward, inclusive). Dr. Seward é um cientista prototípico, na visão de Bram Stoker. Não um cientista louco, longe disso. De fato, o contrário disso. Ele dirige um asilo para doentes mentais, e é fera na craniometria, muito em voga no século 19, um tipo assim como “O Alienista”, de Machado de Assis.

Coisas impressionantes ocorrem com a bela Lucy, mas é preciso que tais “impressões” se avolumem até o limite do tenebroso para que o positivo Dr. Seward se dê conta de que se trata de um caso, bastante corriqueiro, se me permitem colocar assim, de vampirismo. Se é mesmo de evidências que vive a ciência, como, com tantas delas à disposição, o calejado cientista não se dá conta do que realmente acontece? Drácula está repleto de puxões de orelhas nessa confiança arrogante, nesse privilégio institucionalizado da detecção da verdade. Reproduzo aqui a leve palmada aplicada pelo professor Van Helsing em seu cético aluno:

“Você é uma mente sagaz, meu caro John. Sempre raciocinou com clareza e a sua mente é obstinada. Mas costuma frequentemente prejulgar as coisas. Não espera que seus olhos vejam e seus ouvidos ouçam, e tudo aquilo que diuturnamente acontece ao redor de sua própria vida parece não lhe despertar o mínimo interesse. Não consegue admitir que ainda existem muitas coisas que sua percepção não compreende, todavia elas estão aí”.

Sim, elas estão aí. Não é à toa que, apesar de enaltecer a bravura e a devoção cristã de todos os heróis da história que lutam contra o vampiro, é ao próprio Conde Drácula que Van Helsing concede os melhores elogios, de natureza, digamos, intelectual. Drácula é “celebrado como o mais sábio, o mais destro e o mais bravo dos filhos das terras situadas além das densas florestas”. O que torna Drácula elogiável como cientista – no melhor do termo, para Van Helsing – não são seus incríveis poderes malignos, mas os séculos de experiência aguçando suas possibilidades de entendimento muito mais que seus caninos (como naquele gracioso refrán: “más sabe el diablo por viejo que por diablo”). Van Helsing alerta sobre o perigo de alguém assim, criado e experimentado nas antigas terras dos magiares, dos mongóis, dos hunos, “na China, nos mais longínquos rincões da Terra”, fazer das suas logo na arrogante Inglaterra, terra que não apenas engatinha na arte do querer saber, mas até se esquiva disso: “Quem dentre nós teria sequer admitido tal possibilidade, em plena vigência do século 19, a científica era dos céticos e dos adeptos dos fatos comprovados”? Pergunta o professor.

nosferatu02Hoje, e, digamos, no Brasil, não estamos provavelmente às voltas com o perigo de um iminente ataque de vampiros. Mas, acredite, hay outras bruxas soltas por aí. Tal como Shelley e Van Helsing (se posso misturar criadores e criaturas), penso que muitas das querelas atuais que envolvem nossas redes de conversas são vampirescamente infectadas por um olhar injusto sobre o afazer científico. Não tenho a mínima esperança (ou receio) de que os cientistas sejam exímios caçadores de verdades, mas isso não deve ser motivo de desespero pra ninguém.

Debates como os das “guerras científicas”, aquelas que colocam os cientistas de laboratório (ou uma caricatura deles) às turras com os cientistas das humanidades (ou uma caricatura deles) podem ser divertidos para fazer frisson na mídia, mas estão assentados em uma disputa vazia. Nem a Ciência com “c” maiúsculo – os físicos, os biólogos, alguns linguistas – tem a missão sagrada e solitária de desvendar um mundo independente das experiências partilhadas por estes cientistas, nem as Humanidades com “H” maiúsculo – os antropólogos, os psicólogos, alguns linguistas – têm a missão sagrada e solitária de fazer sociologia das outras ciências independente das experiências partilhadas por estes cientistas.

frankenstein02Outro debate que já deu o que tinha que ter dado há séculos (Drácula deve se lembrar dele) é a disputa pelo fogo prometeico da verdade entre a ciência e a religião. Ou entre as ciências e as religiões, se preferir. Ele não se esgota, e até mesmo, recentemente, tem se renovado, exatamente por nada ter de religioso ou científico. Trata-se de uma questão política. O fenômeno da evolução é uma de suas vítimas preferidas, principalmente na sua versão mais tragicômica (e chauvinista, pois finge que a evolução existe para o humano): a humanidade é descendente de macacos ou foi criada por um deus? Se você prefere a primeira resposta, saiba que ela não é resposta para nada. Evolução não é uma teoria que explica coisa alguma: é um fenômeno que deve, como tal, ser explicado pelos cientistas. E se você optou pela segunda resposta, ótimo.

Mesmo assim, isso nada tem a ver com o domínio da ciência, mesmo se for a mais absoluta verdade. Isso porque a ciência não serve pra dizer verdades, mas para explicar os fenômenos tal como entendidos pelos cientistas. Dizer que um deus criou alguma coisa pede (cientificamente falando, é claro), ao menos, que se explique como isso aconteceu. Se esse debate absurdo continua, é porque certos grupos políticos – em especial, a direita evangélica norte-americana, e suas filiais mundo afora, especialmente na África e na América Latina – esperam ganhar espaço institucional (leia-se: almas, poder e grana) vendendo asnices como a “teoria do criacionismo científico” e a “teoria do design inteligente”. Sinto dizer, pra quem gosta de comprar essas bobagens, que elas nada têm de teoria, nada têm de científico, nada têm de inteligente, e são criações medíocres com péssimo design.

Termino este desabafo literário-científico com um exemplo de onde, de fato, eu penso residir a verdade.

Os coprólitos (palavra do grego: pedra de cocô) são fezes de humanos ou outros animais (é claro), no mais das vezes fossilizadas. Por sua conservação, podem oferecer valiosos vestígios físicos, fisiológicos e até moleculares, seja de organismos que viviam nos intestinos do indivíduo defecador, seja do próprio animal que produziu a agora petrificada cagada. É difícil achar uma fonte tão rica de informações sobre o passado quanto os coprólitos. Por exemplo, examinando um cocô desses dá pra conhecer ao menos em parte a dieta de um animal morto há milhares ou milhões de anos, os locais por onde ele transitava (comparando o paleoambiente da região com as amostras do coprólito), os animais com quem ele se relacionava, e se ele tinha vermes ou outras doenças.

shitDevia haver um ditado chinês para isso, do tipo: “se você quiser conhecer a verdade, examine detidamente toda merda que encontrar, mesmo que ela esteja endurecida há séculos”.

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Ferra-se cavalos

ferra_se_cavalos01Não há melhor remédio para o preconceito que sofrermos o dito cujo na carne. José Bento Monteiro Lobato, apesar do que dizem os politicamente corretos, é um bamba da nossa literatura. Nós, leitores, não merecemos ter a sua boa prosa proscrita de onde quer que seja. E apesar do que dizem os politicamente incorretos, Monteiro Lobato foi, sim, um pernicioso racista (aliás, um racista ativista), e não só pelos padrões da época, a ponto do país campeão no quesito segregacionismo (os EUA) rejeitar a publicação de uma obra sua, justo por carregar nas tintas do ódio à negra gente.

O que poucos dizem, pois esse assunto é mal digerido tanto por corretos quanto incorretos, é que Lobato também lutou contra um preconceito. E nesse caso, seu afazer literário dá-lhe boas credenciais, pois a ignorância com que se batia Monteiro Lobato leva o nome de preconceito linguístico (no livro “Preconceito linguístico”, Marcos Bagno cita o escritor a rodo; perdoe se roubo dali umas tantas ideias).

No longínquo ano de 1924 (quando, segundo os gramáticos de hoje, ainda não se judiava da língua de Camões), Monteiro Lobato escreveu o conto “O colocador de pronomes”, uma crítica aos prescritores da “língua culta” e do “português correto”. O personagem-título, um certo Aldrovando Cantagalo, vive guerra sem trégua contra os usuários da língua, supondo que esses deturpam o “verdadeiro idioma” (veja como o texto é atual!), ou seja, o conjunto anacrônico e incoerente de regras embalsamado nos manuais de gramática. A figura ridicularizada por Lobato encontra-se personificada hoje por tantos e bem-pagos consultores de gramática dos meios de comunicação. Talvez por isso, tal como Aldrovando, e como compensação por sua canhestrice linguística, eles tenham esses nomes psicodélicos, como Pasquale Cipro Neto e Dad Squarisi. Essas pessoas, com medíocre compreensão da linguagem (por descuido ou, quem sabe, razões de mercado), despejam rios de preconceito sobre as variações do português brasileiro, confundem língua com ortografia, e, o mais grave, o fazem com toda a legitimidade e repercussão que a velha elite e a grande imprensa lhes concedem.

Se você acha que isso é puro preconceito meu contra os gramáticos, ouçamos o grande Monteiro Lobato. No conto mencionado, Aldrovando encasqueta com uma tabuleta que diz “Ferra-se cavalos”. Quer porque quer corrigi-la, botando o verbo no plural (como ensinam as gramáticas de antanho e de hoje), ao que replica o ferreiro: “V.S. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu”. Sabe o ferreiro, nem tanto o gramático, que cavalos não têm o hábito de se ferrar sozinhos.

Aldrovando veio ao mundo, diz o conto no início, “em virtude de um erro de gramática”. Também seu criador viveu um trauma com o “português correto”, reprovado, no exame para o Instituto de Ciências e Letras, em português oral!

Se Lobato não sabe português, e o resto de nós, humildes cordeiros?

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bango, balango, senhor n’kwango

bango, balango, senhor n’kwango sozinho na cela uma letra de tango de amores roubados de sonhos rasgados destinos fodidos os dois separados pano, carpano quem é o mais humano quem olha pra dentro quem é o mais insano outra humanidade agora é saudade sofrer agorinha de noite e de tarde outra humanidade agora é saudade não ser mais gorila não ter mais vontade gingado de samba na corda mais bamba um banzo doído picada de mamba na letra do tango me chamam n’kwango sozinho na cela eu bango, balango

leipzig, junho de 2004

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A linguagem dos animais

“A linguagem dos animais” é o nome de um belo conto de As mil e uma noites, de outro ainda nas Fábulas Italianas, do cubano Ítalo Calvino, e o princípio organizador do próprio gênero “fábula” no ocidente, de Esopo a La Fontaine. Da arte à pretensa realidade, vemos o cientista como um legislador austero, torcendo o nariz para o maior de todos o pecados, o antropomorfismo, isto é, a atribuição de características humanas a outros seres animados e inanimados: o boi contente, a roseira apaixonada, o mar impiedoso.

Mas peca-se tanto por excesso quanto por escassez. O reverso da medalha é o antropocentrismo, a insistência de que a humanidade é a estrela mais brilhante na constelação dos seres do universo. Muitas pesquisas com a utilização da linguagem humana por outros animais têm obtido resultados importantes e contrários a essa idéia fixa. A gorila Koko com a linguagem de sinais, passando por golfinhos que manipulam estruturas gramaticais, até o papagaio africano Alex que, ao que consta, não apenas repete, mas entende a piada.

Afinal, os animais têm linguagem? O “não” usual a essa pergunta reflete a certeza de que linguagem é o sistema de símbolos e estratégias discursivas tão habilmente manejado por nós nos bares, almoços de família e chats da internet. Mas há mais na linguagem do que ruge a filosofia ocidental. Há uns 40 anos o antropólogo Gregory Bateson nos deu a seguinte dica: se o seu gatinho mia, a melhor tradução não é “leite! leite!”, apesar de geralmente você estar absolutamente correto em interpretar assim. O bichano está dizendo algo como “dependência! dependência!”, ou seja, ele está se referindo à relação estabelecida com o dono. Isso não é nenhuma fábula de Esopo, mas um processo largamente disseminado entre os mamíferos, animais que são cuidados e ensinados, muitas vezes pela mãe, mas, a rigor, por qualquer membro mais velho da comunidade.

em: Vianna, Beto (2010). A linguagem dos animais & outros escritos. Belo Horizonte: Mazza. ps. 25-26.

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o teu pêlo não néga padana

o teu pêlo não néga padana
laranja
e preta
e índia
e surda

o teu pêlo não néga padana
e surda
e muda
e outra
menina

o teu pêlo não néga padana
menina
e fêmea
e louca
e presa

o teu pêlo não néga padana
e presa
e pongo
e feliz
pigméia

feliz é o teu zêlo em ser de outra espécie
pongo en tu pello una loca mirada
que tu no te llamas pigméia ni nada

y demasiada y humana y nada
la demasiada la mona la nada
pra dona pidona padana perdona

perdona nosotros, por todo, por nada
perdona os outros por não ser mais nada
perdona a nós todos por sermos pra nada 

leipzig, dezembro de 2003
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